quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Educação Afetiva


Escrevi esse texto para o final do meu curso Rafcal, sobre distúrbios de comportamento alimentar. Resolvi postar aqui, afinal, saiu do mesmo lugar que os outros, né?

“Rafcal: Reeducação Afeto-Cognitiva do Comportamento Alimentar”


A princípio um título complexo, que quando trazido à consciência, esmiuçado e compreendido, nada mais é do que “saber o quê e como agir para adotar uma nova maneira de se comportar à mesa”.

Estendo-me porém no tema da Educação (ou re-educação, já que se parte do princípio que não se aprendeu corretamente da primeira vez) Afetiva.
“Afeto”, no Aurélio, é definido como “amor, sentimento”, entre outros. Ou seja, nossa emoção mais básica de segurança, nossa zona de conforto. Mas não vivemos numa utopia e sabemos que os pais, por mais zelosos e capacitados, erram e pecam, seja por falta ou excesso: de proteção, de carinho, de confiança, de projeções; enfim, somos humanos e não “perfeitos".


E é lá na infância, quando dependemos de pais (ou de seus substitutos) que montaremos nossa “caixa de ferramentas” para aprender a lidar com o mundo à nossa volta. Em tese, é essa fase de “montagem da caixa” que deveria fazer de nós pessoas capazes de nos bastar, de criar nossa própria segurança emocional.

E por que então há cada vez mais “almas perdidas” mundo afora? Por que há tanta procura por aqueles que se acredita serem detentores de um “saber maior”, a “cura”, o “futuro”? Psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, toda espécie de terapeuta alternativo, médiuns, padres e pastores, para citar alguns, nunca se viram tão ocupados como na última década. A angústia gerada pelos novos hábitos sociais, pela velocidade com que as informações correm o mundo (e as conseqüentes demandas exigidas a partir daí), seguidas por uma alienação pessoal, uma solidão íntima profunda e um crescente medo do que não se conhece, são com certeza a base para que a “má-educação afetiva” que já existe no fundo da mente de muitos domine o ambiente e desencadeie uma série de neuroses, transtornos, preocupações e essas então lotem os consultórios e templos mundo afora.

Afetividade nada mais é que nossa maneira de ver o mundo. Um cheiro pode ser bom para uns e ruim para outros, sendo o mesmo cheiro. O que determina essa diferença é a formação cultural do sujeito e a memória que se criou desse cheiro na primeira vez em que foi sentido. Não só com o olfato, isso acontece com todos os nossos sentidos e todas as nossa emoções. É isso que nos torna únicos; um conjunto de “afetos” nunca será exatamente igual a outro, por mais semelhantes que duas pessoas possam ser.

E onde entra o papel de um bom educador afetivo? Sim, educador, pois foi treinado com técnicas específicas, tanto teóricas quanto práticas, além de ter passado ele próprio por um período de autoconhecimento, para que então pudesse se dispor a compartilhar seus conhecimentos e transmitir a confiança necessária a quem o procura em busca de auxílio. Dentre os profissionais já citados, o psicólogo é aquele que recebe a formação mais completa nesse sentido, ao contrário dos outros citados anteriormente. Mesmo assim, estes não devem ser desmerecidos, pois quando bem intencionados e livres de arrogância, podem acalmar um sujeito enfraquecido e ajudar essa pessoa a sair de uma crise e a enfrentar seu caminho.

Não importa a área de atuação, se o propósito de alguém é cuidar de pessoas, são necessárias ferramentas básicas: responsabilidade e empatia. Sem elas, o caminho está fadado ao fracasso. Talvez uma solução seja cuidar de objetos inanimados, ou então a escolha mais dolorida, porém mais gratificante: dedicar-se a uma reeducação afetiva pessoal.

Um bom psicólogo, porém, tem sua caixa de ferramentas pronta para uso. Procura ser alguém flexível, adaptável e realmente calçar os sapatos do sujeito que vem até ele. Quem o procura determinado a sair de um estado de saúde mental que não o agrada já vem predisposto a mudanças. Mesmo quando não possui o conhecimento do que seja um processo terapêutico, o fato de estar ali demonstra que as coisas não vão bem e que, com o acolhimento ideal e a confiança que o terapeuta venha a lhe causar, abrirá o livro de sua vida e pedirá ajuda para escrevê-lo daqui por diante.

É nesse momento decisivo que um processo terapêutico se define: ao psicólogo cabe despir-se de suas crenças pessoais, seus possíveis julgamentos e focar-se totalmente no indivíduo que o procurou. Procurar entendê-lo como talvez nunca antes na vida alguém tenha tentado, traçar um esquema mental das armadilhas em que essa pessoa se coloca e como ela pode agir para não voltar a fazê-lo, e a partir daí, com tempo, paciência (e não esquecendo que aquele em frente é um ser humano, com defeitos e qualidades), ajudar essa pessoa a encarar essas armadilhas e auto-sabotagens. A partir daí o processo terapêutico ganha vida.

Quando é realizado um esforço para compreender determinada emoção ou reação, elas passam a ser quase “palpáveis”. Com o tempo, essa sensação torna-se consciente, real, “parte de si”, a partir daí transformando-se em objetos passíveis de mudanças. Só aí.

Ouvimos muito durante o curso do Rafcal que “o tempo é nosso maior aliado”. Sábias palavras. É ele que permite que um fato que muito incomoda ao cliente no início do tratamento venha perdendo força, foco e energia, e essa seja canalizada de maneira positiva em prol de melhorias em outras áreas da vida da pessoa, muitas vezes abandonadas devido a já mencionada instalação de processos autodestrutivos como as neuroses e a desistência de si mesmo diante das crises.

Da mesma maneira que um indivíduo pode ser considerado “mal-criado” socialmente, ele o pode ser emocionalmente. Se ele não souber se portar à mesa, por exemplo, pode vir a ter aulas de etiqueta e desenvolver esse comportamento. Se não souber como se comportar frente a situações que não se assemelham àquelas já existentes no seu repertório, ou ainda, se assemelham, mas suas respostas são prejudiciais para si ou para outrem, existe então a possibilidade de ele aprender a enxergar esse prejuízo, decidir evitá-lo e se dispor a tentar uma nova maneira de enxergar a situação. A isso chamamos de reeducação afetiva.

Especificamente com o Rafcal, que nada mais é do que um instrumento amplo de psicoterapia, com o diferencial de ser dirigido a distúrbios de comportamento alimentar, a reeducação se dá através da aceitação do próprio corpo. Não que a pessoa precise passar a gostar de se ver obesa, apenas precisa aceitar-se como tal. Com a aceitação, que é a tarefa básica para que haja mudança, vem o entender-se e respeitar-se como tal, para então a decisão de mudar ter força e intenção suficientes para atingir o sucesso.

Afinal, a gordura pode ir embora, mas o indivíduo por baixo dela permanece.

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